Carta manifesto do coletivo de pesquisadoras e pesquisadores negros no ENANPUR 2025
02/06/2025
Nós, pesquisadoras e pesquisadores negras e negros, presentes no XXI Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR) de 2025, viemos a público com esta carta-manifesto para afirmar nossa existência, resistência e contribuição incontornável para a construção crítica do campo do urbanismo e do planejamento no Brasil. Esta carta é gesto político, sopro ancestral, escrita forjada com as marcas de um país que historicamente negou nossos corpos, nossas vozes e nossos territórios.
Habitamos um país onde o planejamento urbano, desde suas raízes, tem sido ferramenta de exclusão, despossessão e silenciamento dos saberes e das práticas negras. O urbanismo brasileiro, majoritariamente branco, heteronormativo, masculino e eurocentrado, construiu epistemologias que, ainda hoje, operam com vendas raciais. Quem planeja? Para quem se planeja? Quem pesquisa? Que corpos cabem nos territórios idealizados pelos manuais técnicos e pelas normativas frias do Estado?
Este manifesto se ergue contra o epistemicídio institucionalizado e as barreiras socioeconômicas e políticas de acesso que nos lançam à margem das universidades, das agências de fomento, dos espaços de decisão e das referências bibliográficas. Nossos nomes são esquecidos, nossas pesquisas são deslegitimadas, e nossas abordagens, quando acolhidas, são frequentemente embranquecidas, esvaziadas de sua radicalidade e originalidade. É preciso dizer: a produção da cidade no Brasil é atravessada por lógicas raciais, coloniais e patriarcais que precisam ser desnudadas.
Estamos aqui para interromper a lógica de uma cidade e da academia pensada sem nós. Reivindicamos não apenas lugares de fala, mas lugares de formulação, contestação e transformação. Somos vozes plurais, oriundas de diferentes territórios, experiências, saberes e quilombos urbanos. Somos urbanistas, arquitetas, sociólogas, geógrafas, assistentes sociais, planejadores territoriais, comunicadoras, lideranças comunitárias, mestras e mestres de saberes ancestrais. Somos a interseção viva entre ciência e ancestralidade.
O ENANPUR, espaço fundamental para o debate crítico no campo do planejamento urbano e regional, ainda precisa reconhecer que a presença negra não pode ser simbólica, sazonal ou decorativa. Exigimos participação ativa nos GTs, nas mesas principais, nos comitês científicos e editoriais e nas construções coletivas de políticas científicas. Que a organização se comprometa com ações afirmativas inclusivas e de reais garantias de participação na construção do campo. Inclui-se com isso o estabelecimento de políticas e estratégias para se garantir nos próximos ENANPUR’s uma maior participação de estudantes e pesquisadores de todos os níveis, principalmente graduandos, como descontos, subsídios e cotas de valores alternativos. A ausência sistemática de pesquisadoras e pesquisadores negros nas instâncias de poder da ANPUR é sintoma de um racismo estrutural que não se resolve com inclusão cosmética.
A formação socioespacial brasileira é forjada no sangue, suor e sabedoria de nossos ancestrais. As periferias, os terreiros, as favelas, os quilombos contemporâneos, os mercados populares e as bordas urbanas não são apenas espaços de carência, mas territórios de reinvenção, de potência e de produção de conhecimento. Recusamos a retórica da vulnerabilidade que nos reduz à condição de problema. Somos solução, somos proposição.
É urgente romper com o pacto narcísico da branquitude acadêmica, que resiste à partilha do poder e da centralidade discursiva. Enquanto nossos corpos forem lidos como exceção, enquanto nossos temas forem vistos como periféricos, enquanto nossas epistemologias forem tratadas como “alternativas”, a ciência urbana brasileira continuará produzindo cidade para poucos. É necessário deslocar o centro e expandir os critérios de validação do saber.
Denunciamos também o apagamento das mulheres negras, travestis, pessoas trans e dissidentes sexuais negras nos espaços de fala e produção acadêmica. A luta antirracista precisa ser, necessariamente, antissexista, anticolonial e interseccional. Nossa insurgência não é monocromática. Ela se dá na encruzilhada, no entrecruzar das opressões e das potências que nos atravessam.
Reivindicamos políticas de ação afirmativa estruturantes nas graduações e pós-graduações e nos programas de fomento, revisão crítica da bibliografia obrigatória nos cursos de urbanismo e planejamento, e abertura para metodologias sensíveis aos corpos, às narrativas e às estéticas negras. Queremos mesas que não apenas nos convidem, mas que sejam construídas conosco desde o princípio. Queremos pesquisas comprometidas com a justiça racial, e não somente com a eficiência técnica.
Este manifesto é também carta de amor e de solidariedade entre nós. Sabemos que estar aqui é um ato de coragem. Cada uma de nossas trajetórias é marcada por enfrentamentos cotidianos ao racismo, ao elitismo, à desumanização e ao epistemicídio. Por isso, reafirmamos o compromisso com o cuidado coletivo, com a escuta sensível, com a construção de redes afetivas e políticas que nos fortaleçam enquanto pesquisadores e pesquisadoras. Dessa forma pretendemos nos aquilombar para enfrentar a falta de orientação, de referências bibliográficas, de pareceristas que contribuam com o enfrentamento ao racismo, a segregação racial e ao embranquecimento das cidades, das metodologias e publicações do campo.
Somos herdeiros e herdeiras de uma tradição intelectual negra que sempre pensou a cidade: Carolina Maria de Jesus, Milton Santos, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, entre tantos outros. Nos inspiramos neles para afirmar que a cidade que queremos não será construída sem rupturas radicais com o presente.
Não há reforma urbana possível sem justiça racial. Não há planejamento legítimo sem escuta das comunidades negras. Não há ciência ética que ignore os gritos que vêm das vielas, dos becos, das encruzilhadas. Seguiremos mobilizados, organizados e atentos. Não retrocederemos. Seremos multidão. Seremos revoada.
Por fim, convocamos todas, todos e todes que se comprometem com um pensamento urbano e regional, do território, antirracista, popular e democrática a se somarem a nós. Nossa luta não é por inserção em um sistema excludente, mas pela transformação radical da forma como o conhecimento é produzido, partilhado e vivido. Somos o que pulsa, que canta, que resiste. Somos a cidade que há de vir.
REDE NEGRA DE PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL
Albert Milles de Souza – NEGRAM/IPPUR/UFRJ, AGB-Juiz de Fora
Aline Miranda Barbosa – NEABI/IFPR (Campus Paranaguá)
Ana Luiza Fernandes – NEGRAM/IPPUR/UFRJ
André Augusto Araújo Oliveira – IAU/USP, Rede BrCidades
Andrew Matheus Silva Leal – Observatório das Baixadas
Antônio Pimentel Sequeira Júnior – PPGAU/UFF
Cláudio José Santiago Vega de Moura – IPPUR/UFRJ
Clovis Nascimento Junior – IPPUR/UFRJ
Coletivo Negro – Maria José Justino – IPPUR/UFRJ
Cynthia Bráulio Alvim Bustamante – PPGEO/UFMG
Daniel Henrique de Menezes Dias – Associação Arquitetas Sem Fronteiras (ASF Brasil) – Coletivo Quilombo Reconhece Quilombo
Desirée Figueiredo Carneiro – FAUUSP
Gabriela Leandro Pereira – PPGAU/UFBA
Gabriela de Lima Manique Barreto – GEUR/UEPG
Gabriela Lima de Onofre – EAU/UFF
Grupo de Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Estadual de Ponta Grossa – GEUR/UEPG
Grupo de Pesquisa Produção do Território e de Territorialidades – Baobá – PUC-Rio
Gisele Brito – FAUUSP/Peregum
Guilherme Assis da Motta – PPGArq/PUC-Rio
Helissan Cavalcante Vieira – NEGRAM/IPPUR/UFRJ
João Soares Pena – UNEB
Jonathan Araujo Barreto de Souza – IPPUR/UFRJ
Juliani Brignol Walotek – PPGPLAN/UDESC e coletivo Shikoba (Mulheres negras de Garopaba-SC)
Karine Corrêa Santos Silva – PPGDR/UFT, Rede BrCidades, Enegrecer
Laboratório Encruzilhada
Laboratório de Planejamento Urbano e Regional
Laboratório de Planejamento Territorial – UFABC
Larissa Grazielle Silva dos Santos – PPGAU/UFBA
Luiz Felipe dos Anjos – BPT/LAPLAN/UFABC
Mayara Mychella Sena Araújo – UFBA
Nathan da Silva de Almeida – UFRRJ – IM/PETGEO-IM
Nathália Pedrozo Gomes – PROPUR/UFRGS
Rede de Geografias Negras
Renato Emerson dos Santos – IPPUR/UFRJ
Rita Montezuma – NIPP – POSGEO/UFF
Sherlen Cibely Rodrigues Borges – PROPUR/ UFRGS
Sillas de Castro Ferreira Coelho – IE/Unicamp
Tatiana Martinz Gil de Alcantara – PROARQ/PUC-Rio
Thaissa dos Santos Martins – PPGAU/UFF
Vitoria Gouveia dos Santos Ribeiro Machado – PPGAU/UFF
Viviane Luise de Jesus Almeida – FAUUSP, Rede BrCidades
Waleska dos Santos Queiroz – Observatório das Baixadas
